"Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade."
"Irmã Outsider" é uma coletânea de ensaios e conferências escritos por Audre Lorde, uma proeminente poeta, escritora e ativista norte-americana. Os textos foram produzidos entre 1975 e 1983 e abordam uma variedade de temas, incluindo sexualidade, autocuidado, racismo, amor, sexismo, classe e LGBTfobia. Lorde, uma mulher negra, lésbica, socialista, mãe e feminista, escreve a partir de sua posição de "outsider", alguém que frequentemente se viu excluída ou rotulada como "difícil". Ela argumenta que as opressões se acumulam de forma não hierárquica e defende a importância de reconhecer a diferença como uma força enriquecedora. O livro reúne alguns de seus textos mais famosos, oferecendo uma visão profunda de seu pensamento e sua contribuição para a teoria feminista contemporânea.
Audre Lorde (1934-1992) foi uma influente poeta, escritora, feminista, ativista e professora norte-americana. Ela nasceu em Nova Iorque, Estados Unidos, de pais imigrantes caribenhos, e ao longo de sua vida, desempenhou um papel fundamental na promoção da justiça social, da igualdade e dos direitos das mulheres, especialmente das mulheres negras e LGBTQ+.
Lorde explorou diversas formas de expressão, incluindo a poesia, a prosa e o ensaio. Sua escrita frequentemente abordava questões relacionadas à identidade, à raça, à sexualidade e ao ativismo. Sua obra era profundamente influenciada por sua própria experiência como uma mulher negra e lésbica nos Estados Unidos.
Ela também foi uma das pioneiras na interseccionalidade, a ideia de que as diferentes formas de opressão estão interconectadas e que as pessoas enfrentam múltiplas formas de discriminação simultaneamente. Esse conceito se reflete em grande parte de sua escrita, onde ela explorava como a opressão de gênero, raça, classe e sexualidade se entrelaçam.
A interseccionalidade é um conceito fundamental na teoria crítica e nos estudos sociais que se refere à interseção ou sobreposição de múltiplos sistemas de opressão, discriminação ou desvantagem que uma pessoa ou grupo pode enfrentar com base em sua identidade social. Esse conceito reconhece que as pessoas não são afetadas apenas por uma forma de discriminação, como gênero, raça, classe social, sexualidade, idade, deficiência, religião, entre outros, mas sim por uma complexa teia de fatores que se entrelaçam e se sobrepõem.
A ideia central da interseccionalidade é que as diferentes formas de opressão não podem ser analisadas de forma isolada, pois muitas vezes se reforçam e amplificam. Por exemplo, uma mulher negra pode enfrentar discriminação de gênero, racismo e, possivelmente, também classismo, dependendo de su a situação econômica. Portanto, sua experiência de opressão não pode ser compreendida apenas através de uma lente única, como a do feminismo ou do movimento antirracista, mas sim considerando todas essas dimensões interconectadas.
A interseccionalidade também destaca a importância de reconhecer a diversidade de experiências dentro de grupos socialmente marginalizados. Por exemplo, mulheres negras não compartilham todas as mesmas experiências, pois podem ter diferentes orientações sexuais, níveis de renda, religiões, idades, entre outros aspectos que influenciam suas vidas de maneiras únicas.
O termo "interseccionalidade" foi cunhado pela professora de direito Kimberlé Crenshaw nos anos 1980, inicialmente para descrever como as mulheres negras nos Estados Unidos enfrentavam uma forma única de discriminação que não era adequadamente abordada nem pelo movimento feminista, que geralmente se concentrava em mulheres brancas, nem pelo movimento antirracista, que geralmente se concentrava em homens negros. Desde então, o conceito se expandiu e se tornou uma ferramenta poderosa para entender as complexidades das desigualdades sociais e para promover uma abordagem mais inclusiva e justa na luta por igualdade e justiça social.
"A Poesia Não é um Luxo" é um ensaio icônico escrito por Audre Lorde. Este ensaio foi publicado originalmente em 1977 no livro "Sister Outsider", mas suas ideias e mensagens continuam a ressoar e inspirar até os dias de hoje.
Lorde argumenta apaixonadamente que a poesia não é um luxo, mas uma necessidade vital para as pessoas, especialmente para as mulheres e para aqueles que pertencem a grupos marginalizados. Ela argumenta que a poesia é uma ferramenta de sobrevivência, uma forma de expressão que permite às pessoas dar voz às suas experiências e lutar contra as opressões que enfrentam.
Lorde acredita que a poesia é uma maneira de acessar e dar sentido às emoções, às experiências e às verdades profundas que muitas vezes são silenciadas pela sociedade. Ela argumenta que a sociedade muitas vezes desvaloriza a poesia, considerando-a como algo extravagante ou supérfluo, quando na realidade, é uma forma de resistência, cura e empoderamento.
A poesia não é algo reservado apenas para os intelectuais ou para uma elite cultural. Ela defende que todos têm a capacidade de criar poesia e que todos têm histórias e experiências que merecem ser contadas. Ela encoraja as pessoas a encontrarem sua própria voz poética e a usá-la como uma ferramenta de autodescoberta, empoderamento e conexão com os outros.
Você pode ler aqui "A Poesia não é um luxo", com tradução de STEPHANIE BORGES.
A qualidade da luz sob a qual analisamos nossa vida tem efeito direto na forma como vivemos, nos resultados obtidos e nas mudanças que desejamos provocar por meio de nossa vida. É sob essa luz que damos forma às ideias que nos fazem buscar nossa magia, para então torná-las realidade. Isso é a poesia como iluminação, pois é através da poesia que nomeamos essas ideias que – até o poema – não têm nome nem forma, estão prestes a nascer, mas já foram sentidas. A destilação da experiência da qual a verdadeira poesia brota dá à luz o pensamento, do mesmo modo que o sonho dá à luz o conceito, o sentimento dá à luz a ideia, o conhecimento da à luz (precede) a compreensão. Na medida em que aprendemos a suportar a intimidade da investigação e a florescer dentro dela, na medida em que aprendemos a usar o resultado dessa investigação para dar poder à nossa vida, os medos que dominam nossa existência e moldam nossos silêncios começam a perder seu controle sobre nós. Dentro de cada uma de nós, mulheres, existe um lugar sombrio onde cresce, oculto, e de onde emerge nosso verdadeiro espírito, “belo/ e resistente como castanha/ pilares se opondo ao (seu) nosso pesadelo de fraqueza” e de impotência. Esse nosso lugar interior de possibilidades é escuro porque antigo e oculto; sobreviveu e se fortaleceu com essa escuridão. Dentro desse local profundo, cada uma de nós mantém uma reserva incrível de criatividade e de poder, de emoções e de sentimentos que ainda não foram examinados e registrados. O lugar de poder da mulher dentro de cada uma de nós não é claro nem superficial; é escuro, é antigo e é profundo. Quando olhamos a vida ao modo europeu como apenas um problema a ser resolvido, confiamos exclusivamente em nossas ideias para nos libertar, pois elas, segundo nos disseram os patriarcas brancos, são o que temos de valioso. No entanto, quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com a consciência não europeia de que a vida, como situação, deve ser experimentada e que devemos interagir com ela, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder – é delas que surge o verdadeiro conhecimento e, com ele, as atitudes duradouras. Neste momento, acredito que as mulheres carregamos dentro de nós a possibilidade de fundirmos essas duas abordagens tão necessárias à sobrevivência, e é na poesia que nos aproximamos ao máximo dessa fusão. Falo aqui da poesia como destilação reveladora da experiência, não do estéril jogo de palavras que, tão frequentemente e de modo distorcido, os patriarcas brancos chamam de poesia – a fim de disfarçar um desejo desesperado de imaginação sem discernimento. Para as mulheres, então, a poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Ela cria a qualidade da luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia, e então como ação mais tangível. É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser pensado. Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são nossas experiências diárias. À medida que os conhecemos e os aceitamos, nossos sentimentos, e o ato de explorá-los com honestidade, se tornam santuários e campos férteis para as ideias mais radicais e ousadas. Eles se tornam um abrigo para aquela divergência tão necessária à mudança e à formulação de qualquer ação significativa. Agora mesmo, eu poderia citar dez ideias que eu consideraria intoleráveis ou incompreensíveis e assustadoras a menos que viessem de sonhos e de poemas. Isso não é mero devaneio, mas sim manter um olhar atento ao verdadeiro significado de “isso me cai bem”. Podemos nos condicionar a respeitar nossos sentimentos e transpô-los em linguagem para que sejam compartilhados. E o que ajuda a criar essa linguagem onde ela ainda não existe é a nossa poesia. A poesia não é apenas sonho e imaginação; ela é o esqueleto que estrutura nossa vida. Ela estabelece os alicerces para um futuro de mudanças, uma ponte que atravessa o medo que sentimos daquilo que nunca existiu. A possibilidade não é nem eterna nem instantânea. Não é fácil manter a crença em sua eficácia. Às vezes, podemos fazer um grande esforço para fundar uma verdadeira linha de frente em resistência à morte que esperam que tenhamos, simplesmente para que essa linha de frente seja atacada ou ameaçada pelas farsas que fomos socializadas para temer, ou pela batida em retirada das aprovações que fomos orientadas a buscar por segurança. As mulheres nos vemos diminuídas ou amansadas por acusações pretensamente inofensivas de infantilidade, de falta de universalidade, de inconstância, de sensualidade. E quem é que pergunta: Estou alterando sua aura, suas ideias, seus sonhos, ou estou simplesmente levando-as a tomar uma atitude temporária e reativa? E ainda que uma atitude reativa não seja de todo mal, é preciso analisá-la no contexto da necessidade de uma verdadeira mudança nos próprios alicerces da nossa vida. Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade. De qualquer maneira, a experiência nos ensinou que a ação no presente também é necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a menos que vivam, não podem viver a menos que sejam nutridas, e quem mais daria a elas o verdadeiro alimento sem o qual seus sonhos não seriam diferentes dos nossos? “Se vocês querem que mudemos o mundo um dia, precisamos pelo menos viver o suficiente para crescer!”, grita a criança. Às vezes nos drogamos com sonhos de novas ideias. A cabeça vai nos salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas aguardando nos bastidores o momento de nos salvar como mulheres, como seres humanos. Existem apenas ideias velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e constatações dentro de nós mesmas – junto da coragem renovada de as colocarmos à prova. E devemos encorajar constantemente umas às outras a nos aventurar nas ações hereges que nossos sonhos sugerem e que são desmerecidas por tantas das nossas ideias antigas. Na linha de frente da nossa passagem à mudança existe apenas a poesia para aludir à possibilidade tornada real. Nossos poemas articulam as implicações de nós mesmas, aquilo que sentimos internamente e ousamos trazer à realidade (ou com o qual conformamos nossa ação), nossos medos, nossas esperanças, nossos mais íntimos terrores. Por vivermos dentro de estruturas definidas pelo lucro, por relações de poder unilaterais, pela desumanização institucional, nossos sentimentos não estariam destinados a sobreviver. Mantidos por perto como apêndices inevitáveis ou agradáveis passatempos, esperava-se que os sentimentos se submetessem ao pensamento assim como era esperado das mulheres que se submetessem aos homens. Mas as mulheres sobreviveram. Como poetas. E não existem novas dores. Já as sentimos antes. E escondemos esse fato no mesmo lugar onde temos escondido nosso poder. As dores emergem dos nossos sonhos, e são os nossos sonhos que apontam o caminho para a liberdade. Aqueles sonhos que se tornam realizáveis por meio dos nossos poemas, que nos dão a força e a coragem para ver, sentir, falar e ousar. Se aquilo de que precisamos para sonhar, para conduzir nosso espírito de maneira mais direta e profunda rumo à esperança, for desprezado como sendo um luxo, vamos abrir mão do cerne – da fonte – do nosso poder, da nossa condição de mulher; vamos abrir mão do futuro dos nossos mundos. Pois novas ideias não existem. Há apenas novas formas de fazê-las serem sentidas – de investigar como são sentidas quando vividas às 7 horas da manhã de um domingo, depois do almoço, durante o amor selvagem, na guerra, no parto, velando nossos mortos – enquanto sofremos os velhos anseios, combatemos as velhas advertências e os velhos medos de ficarmos em silêncio, impotentes e sozinhas, enquanto experimentamos novas possibilidades e potências. |