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Foto do escritorAnna F. Monteiro

A trajetória das resistências de uma mulher

Atualizado: 15 de ago. de 2022

O Paquiderme:


Histórias de mulheres são minha jornada à parte dentro dos dias. Das biografias às ficções, me deparo com uma sincera fome de conhecer o que nos forma através dos tantos femininos modos de vida que resistem por aí, bradando pelo mundo.


A linguagem dos caminhos das mulheres, frente a um mundo predominantemente machista e violento em sua estrutura, acaba se portando como um enfrentamento, uma espécie de estética resistente que confronta a partir da sua existência. O feminino-linguagem é presença e voz em síntese de combate. Quando praticada na sua própria essência, a partir da própria fonte, toma um rumo projetável de força.

Lembro quando li pela primeira vez o incansável “Teoria King Kong”, da escritora Virginie Despentes, que trouxe da sua experiência com o punk e com a juventude uma estética de enfrentamento na forma como escreve, da escolha temática ao modo de narrar. A posição é consciente e defendida pela autora abertamente, trazendo para a linha de frente uma perspectiva ainda mais delineada do protagonismo autoral de uma mulher; em (se) escrever nas linhas do mundo da forma que bem entender. Sem pedir desculpas nem licença, como deve ser.


Nossas histórias importam. Formam eco, dialogam entre si, levantam outras memórias do esquecimento, da luta solitária: cria-se um tecido nobre e poderoso que ressoa sobre as identidades e os graves episódios vividos a partir dos gêneros. Ao depararmo-nos umas com as outras através das nossas experiências, abrimos os olhos para uma rede que nos une enquanto sujeitas. No final das contas, é sobre isso: entender e se abrir para as mais distintas lutas dentro dos espectros possíveis de feminino na sociedade. Nossas conversas e vidas, registremos bem, importam demais.


Nesse rumo de buscar o eco dessas vozes, encontrei o trabalho de Nico Antonio e os Filhos do Mar quase que por um acaso que faz a esquina dobrar. O grupo paulista foi criado pelo homônimo, Nico, que idealizou os trabalhos musicais a partir da história da mãe. Isso me tocou. Já parti para muitos cantos criativos e empíricos a partir da história daquela que me antecedeu, da que me trouxe aqui. Digerindo a vivência da minha mãe, desenrolei muitos sentidos da e para a mulher que sou hoje. Cuidar de verdade do próprio quintal, dizem, faz surgir um respeito maior e mais vivo pela própria ideia de casa.

Nico Antonio trouxe a mãe para a formação da banda. Dona Leni Rocha está à frente do projeto que carrega sua trajetória. Seu vocal no palco já foi tantas vezes de encontro a outras mulheres, outras mães, outros corpos que se reconheceram nos caminhos que já fez ou saiu. Da descoberta do teor abusivo e opressor de uma relação, da sobrevivência, das emboscadas particulares de uma cidade desconhecida, da perda de um filho, da dormência dos remédios e pressões estéticas do campo social. Na obra “O Paquiderme”, somos convidados a renascer junto dessa mulher a partir de suas angústias.


A ópera canção se dividiu em seis EPs de forma a contar a história em capítulos - assim, com calma, desde o começo, espelhando o próprio tempo da protagonista. O projeto conta com a direção artística do Mouffe, coletivo paulista de cineastas.


Esse grupo de mulheres criou uma narrativa audiovisual para a obra, apresentando uma proposta que homenageia a noção de performance da eterna Pina Bausch. Junto aos episódios musicais, podemos contemplar um álbum visual, cena a cena revelando a sensibilidade da narrativa através do gesto corporal.

Acompanhar a dona Leni em seu próprio curso através das canções e da performance dos filmes nos recorda do primordial: a felicidade de uma mulher, sua própria busca e prioridade, é um ato político. Sua saúde mental, sua independência, sua criação. O levante e brilho de uma mulher marcam social e culturalmente uma posição política. O contexto da luta para não ser morta apenas por ser mulher grita em macabros números, alimentando a urgência e desejo para que não fosse preciso tanto só para sobreviver. E sobreviver sã.

Até a utópica realidade, seguimos. De preferência, lembrando que nossa risada, pessoal e coletiva, é a força que move. Mulher é a nossa primeira casa, o portal que torna possível a travessia ao mundo. Cuidar, honrar, respeitar: encaremos os verbos mínimos diante do contexto dessas vidas. Somar com as mulheres é, de tantas formas, buscar a cura sistêmica e estrutural da sociedade em que vivemos.


“O Paquiderme” é capitulado e desmembrado para formar o todo. Cada EP se lança como em novelas de folhetim, tecendo o enredo em cada um de seus pontos. Os títulos contemplam as partes da ordem de mamíferos: primeiro a tromba, a orelha, o tronco. A inspiração do nome, descobri, veio da história popular dos sete sábios cegos. O recado que se intitula é simples: cada pedaço conta para vermos o real todo que custam aos olhos. É sobre cada lacuna e variação, cada subtítulo e ponto e vírgula.


À essa altura, a série de lançamentos está na seção “Patas”, quarto EP que se apresenta no dia 30 de abril (os lançamentos são mensais). A abordagem narrativa aqui investiga com acidez as pressões estéticas e medicamentosas acerca da mulher, o ajuste impiedoso que o social cunha como imprescindível. Em batuque de samba, o convite ao deboche diante do contexto fica aberto.

Nico Antonio já conversou em entrevista com o pessoal do Humans of New York, renomada plataforma que surgiu com a proposta de entrevistar pessoas comuns pelas ruas da metrópole sobre questões da vida e enredos particulares. Hoje, a plataforma não se resume só à cidade, tendo chegado no contato com Nico, em São Paulo.


No final da conversa, o músico (que também é ator) relembra a primeira performance da mãe junto do grupo. Recordando do nervosismo e do sumiço das falas na memória, contou que, quando as cortinas finalmente se abriram, a mãe olhou o público no fundo dos olhos ao entregar seus versos perfeitamente, sem nenhum erro. “Ela estava calma, confiante”, rememora Nico, “como se finalmente estivesse no lugar ao qual sempre pertenceu”.


Toda vez que vasculho o material do grupo, ouvindo e indo de encontro aos sons d’O Paquiderme, fico frente a frente com dona Leni. E com tantas outras Lenis, inclusive as que me habitam. Numa contemplação de identidades e sobre como contamos nossas histórias, vejo com facilidade na imagem de Leni no palco um símbolo: estamos presentes. E temos muito o que falar.



Anna F. Monteiro

É jornalista e produtora cultural.

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