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Foto do escritorClara Lindorfer

As artistas apagadas da América Latina.

Atualizado: 15 de ago. de 2022



Como percebemos a história? Conhecemos as versões que nos são dadas pelos historiadores, sejam elas o que aprendemos na escola através dos nossos livros didáticos, ou o aprofundamento que buscamos ao longo da vida no intuito de aprimorar nossa visão de mundo. Confiamos nessas versões por nos serem transmitidas através de fatos documentados, analisados sob um julgamento criterioso e comprometido em descobrir a verdade e verificar sua autenticidade.


O que tendemos a nos esquecer, entretanto, é que esses registros dos acontecimentos investigados e analisados pelos historiadores não estão isentos de contestação, uma vez que os elementos narrativos que utilizamos para compor essa janela para o passado também atravessam a curadoria individual dos personagens de cada época. Cada ser humano que existiu e contou sua história esteve sujeito a um contexto cultural, um ponto de vista ideológico, uma construção de normas e regras que regeram seu tempo e todos esses aspectos moldam profundamente a forma como decidimos discorrer sobre o mundo. Por mais genuínas que possam ser nossas intenções de deixar registros verdadeiramente imparciais, seremos sempre limitados pelas nossas experiências como indivíduos e isso, por si só, compõe uma lente através da qual analisamos os eventos e os outros.


Portanto, talvez mais importante do que perguntar “como percebemos a história?”, seja levantar a pergunta: quem escreve a história?


Terminamos por ouvir com muito mais frequência as vozes daqueles que se saíram bem sucedidos sobre outros. Quantas não são as produções hollywoodianas que exaltam o heroísmo do povo americano durante a Guerra Fria, retratando os russos como um inimigo perigoso e ameaçador que precisa ser derrotado a qualquer custo? Podemos ver exemplos dessa caracterização não apenas em filmes de guerra, como “Amanhecer Violento” e “Ivasion USA”, como também em produções posteriores e extremamente populares como a série “Chernobyl” de 2019. Mas conhecemos em muito menos volume as produções russas que discorrem sobre os mesmos eventos sob um ponto de vista ideológico diferente, como é o caso do curta “O Milionário” de Vitold Bordzilovsky e Yuri Prytkov, que retrata com imenso sarcasmo a postura e os ideais americanos.


Não procuro aqui defender a superioridade moral de nenhum desses pontos de vista, apenas ilustrar, através de um exemplo isolado, que ninguém se posiciona como o vilão de sua própria história e isso transparece na intenção das produções artísticas de cada tempo e povo. A grande questão é que aqueles que possuem ou impõem mais poder sobre os outros tendem a ter mais páginas em branco para escrever sobre si mesmos como protagonistas. Essa relação de apagamento cultural e histórico daqueles tidos como “inferiores”, não se aplica apenas à guerra, mas também à relação de dizimação dos povos indígenas nas américas, ao racismo, decorrente da escravidão e profundamente engastado em nossos sistemas sociopolíticos, e também, indiscutivelmente, à sistêmica restrição de atuação das mulheres nos mais diversos cenários, inclusive o artístico.


Compreendo que nas últimas décadas houve um esforço ativo, por parte daqueles que estudam a história, em lançar nova luz sobre as narrativas dos que foram “derrotados” propondo uma crítica às estruturas hegemônicas e favorecendo o ponto de vista dos grupos minimizados e inferiorizados. Esse processo de correção de injustiças, entretanto, é longo e encontra grande dificuldade frente às construções de poder que foram estabelecidas ao longo dos séculos, ou mesmo milênios.


Essa exata dificuldade tende a se explicitar no trabalho do historiador da arte, por mais bem intencionado que este seja, quando procura relatar os eventos da nossa história. Seu ofício é, por base, masculino e acaba por exprimir juízos de valor também referentes a gênero durante o processo de construção dos recortes temporais que definem nossa visão de mundo. Como consequência, quando pensamos na mulher e na arte, tendemos a restringi-la a uma percepção específica, exaltando virtudes que são “inerentemente femininas”, sob um ponto de vista masculino, como a beleza, o erotismo, a natureza, a devoção e a maternidade. Ao mesmo tempo, grande parte das produções autorais de mulheres foram abandonadas ao esquecimento por não terem sido consideradas de qualidade, por não terem despertado interesse de público e crítica ou por terem rompido com os códigos e as expectativas que eram atribuídas a elas. Incontáveis mulheres encerraram suas trajetórias artísticas cedo demais, ou nem mesmo as começaram, devido às dificuldades que encontraram em se manter ativas dentro de um contexto que as desfavorecia, como é belissimamente ilustrado pela escritora Martha Batalha no livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”.


Especialmente na América Latina, continente cuja história foi marcada em abundância pela presença de governos ditatoriais conservadores, a atuação livre da mulher, tanto no campo intelectual, quanto político, foi alvo de imensa repressão e sua militância não foi adequadamente refletida na curadoria desse tempo.


“(...) a contagem feita pelo grupo ativista Guerrilla Girls em 2017, por ocasião da exposição no Masp, apontou que apenas 6% do total de artistas com obras em exposição na sala do acervo permanente do museu eram mulheres.” (Revista Zum). Nos inserimos em um contexto restrito, tendemos a nos aproximar daqueles com quem compartilhamos ideias e visões de mundo similares e formamos um monolito social que decide enxergar apenas o que lhe convém, repudiando os que nos trazem informações com as quais não queremos lidar e, como consequência, tendemos a conceber a realidade de forma distorcida. A verdade é que, apesar das amplas conquistas de movimentos ativistas e da grande abertura de espaço para as mulheres no campo da arte, a representatividade desse grupo ainda se mantém distante da equidade almejada. Apenas 6% do total de artistas com obras em exposição permanente no museu eram mulheres, me pergunto o quanto esse número diminuiria se contássemos apenas as mulheres latino-americanas.



Faço aqui, portanto, uma pequena homenagem a essas figuras, na forma de uma breve, porém cuidadosa, seleção de mulheres artistas latino-americanas cujas produções, algumas largamente reconhecidas e outras profundamente negligenciadas, merecem um espaço para apreciação. Amplamente voltadas para a retomada do corpo e a luta contra a violência e a tortura, suas obras são de permanente relevância, procurando expressar uma sensibilidade inovadora em meio a contextos marcadamente patriarcais e repressores.


María Izquierdo (1902 - 1955)

Conhecida por ser a primeira mulher mexicana a ter uma exposição realizada nos Estados Unidos, María Izquierdo desafiou os paradigmas impostos por seus predecessores dentro do movimento muralista, pintando, com excelente manejo de cor, retratos de suas raízes nacionais.

Nascida em San Juan de los Lagos, no México, Izquierdo teve uma vida conturbada, casou-se aos 14 com um homem muito mais velho, e se divorciou, apesar do escândalo que isso representava na época. Aos 25 anos ingressou na Academia de Belas Artes, onde chamou a atenção do diretor, Diego Rivera, pela qualidade expressiva de seu trabalho.

Pintou sobre todos os temas, protagonizando suas obras com personagens femininas sagazes e fortes, qualidades que eram geralmente atribuídas aos heróis masculinos de seu país. Apesar de seu sucesso e da exposição internacional, sofreu repúdio de seu próprio mentor, na ocasião em que Rivera bloqueou a encomenda, feita a ela, de um mural na escadaria do Palácio do Distrito Federal, atestando que por ser mulher seu trabalho deveria ser exposto em algum local de menor escala.

Morreu cedo, aos 53 anos, devido a uma embolia pulmonar, sem dinheiro e com pouco reconhecimento, tendo sido negada a possibilidade de desenvolver seu talento dentro do próprio país. Apesar de nunca ter se considerado feminista, lutou a vida inteira por apoiar trabalhos desenvolvidos por mulheres mexicanas.


Lygia Clark (1920 - 1988)

Pintora e escultora brasileira, contemporânea ao movimento modernista, foi mais conhecida pelo seu trabalho vinculado à experiência com objetos tridimensionais, através dos quais propunha a desalienação do público pela intervenção direta em suas peças. Algumas de suas mais famosas propostas nesse campo, são as séries Casulos (1959) e Bichos (1960).

Iniciou seus estudos sob orientação do paisagista Burle Marx, no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Paris, com Fernand Léger, Arpad Szenes e Isaac Dobrinsky. Em seu retorno ao Brasil, fez parte do Grupo Frente e ajudou a fundar o Grupo Neoconcreto.

Ao longo de sua trajetória, afastou-se aos poucos da criação de objetos estéticos e favoreceu propostas que envolvessem experiências corporais, como é o caso da obra performática Túnel (1973), na qual as pessoas eram convidadas a percorrer um tubo de pano de 50 metros de comprimento, mesclando sentimentos claustrofóbicos a uma alegoria sobre o nascimento.

Ao final de sua vida, Lygia procurou dar um sentido terapêutico e sensorial às suas criações, explorando a memória corporal através da relação com objetos, assumindo suas produções como verdadeiramente alheias à arte e próximas à psicanálise.


Ana Mendieta (1948 - 1985)

Ana Mendieta foi uma artista cubana que, apenas aos 12 anos de idade, foi enviada para os Estados Unidos, como parte da Operação Peter Pan, fugindo do governo de Fidel Castro. Cresceu em Iowa, na região centro-oeste do país, onde foi marcada pelo preconceito e racismo dos quais foi alvo em função de sua origem.

Seu trabalho pode ser dividido em dois períodos distintos, o primeiro focado na violência relacionada ao corpo da mulher, decorrente de sua própria experiência com a sexualização que sofreu por ser latina, expressa pela obra Impressões de Vidro Sobre Corpo (1972), e da revolta advinda do brutal estupro e assassinato de uma estudante na universidade que frequentava, ocasião em que produziu a performance Sem título (Cena de estupro) (1973), onde se manteve atada a uma mesa, com o corpo manchado de sangue durante cerca de uma hora, tornando o público inerte cúmplice do crime que denunciava.

Já a segunda fase de sua produção aborda uma relação diferente com o feminino e o corpo, com um componente mais presente do elemento ritualístico, buscando resgatar aspectos das suas raízes cubanas, através da memória das culturas originárias e a íntima relação com a natureza. Desse período, uma de suas mais famosas obras é a série Silhueta (1973-80).

Ana Mendieta morreu de forma trágica e polêmica, tendo caído da janela do 34૦ andar de seu apartamento. Apesar da causa de sua morte ter sido declarada suicídio, todas as evidências apontam que foi assassinada por seu marido Carl Andre, que foi absolvido das acusações.


Anna Maria Maiolino (1942)

Pintora, escultora, desenhista e gravadora, Anna Maria Maiolino nasceu na Itália, mas teve uma formação artística majoritariamente latino-americana. Mudou-se ainda jovem para a Venezuela, onde estudou na Escuela de Artes Plásticas Cristóbal Rojas. Posteriormente se transferiu para o Rio de Janeiro, onde estudou gravura com o artista Adir Botelho na Escola Nacional de Belas Artes. Durante a década de 60 realizou diversas exposições, tanto no Brasil quanto na Venezuela, além de ter integrado ao grupo Nova Figuração, que fazia frente à abstração e ao momento político brasileiro.

Tendo explorado diversos tipos de linguagem no campo da arte, Maiolino viveu diversas fases distintas em sua produção, tendo concentrado-se majoritariamente na produção de xilogravuras e objetos no início da formação. No desenvolvimento de sua carreira, durante a década de 70, deu espaço à exploração com fotografia e filme, momento no qual foi premiada pelo trabalho In-Out, Antropofagia (1974). Ainda no mesmo período, fez experimentações com poesia e desenho, que renderam investigações sobre materialidade e espaço através do papel, como na série Buracos Negros (1974).

A partir da década de 80, entretanto, volta-se para aquela que viria a ser sua principal forma de expressão, a utilização da argila e o aspecto manual da criação artística.

Em suas obras sempre procurou abordar temas políticos e cotidianos, discorrendo sobre o corpo e o papel da mulher na sociedade, característica muito claramente ilustrada através das imagens vistas em Fotopoemação (1973-2017).


Letícia Parente (1930 - 1991)

Pioneira da videoarte no Brasil, Letícia Parente ficou marcada pelos filmes que fez, mas a poética de sua obra retém muito mais do que apenas o que sugere esse título. Nascida no Rio de Janeiro e graduada em química, passou a produzir gravuras durante seu mestrado, ao entrar em contato com aulas realizadas no Núcleo de Atividades Criativas na PUC-RIO, onde estudava.

Como cientista e tendo sempre o corpo e sua relação entre o íntimo e o público como norte, investigou diversos tipos de suporte para seu trabalho. Ao lado de Anna Bella Geiger, foi a primeira a produzir obras gravadas utilizando uma câmera portátil analógica, se desprendendo das limitações do estúdio.

Uma de suas mais famosas produções é a obra Marca Registrada (1975), em que filma a si mesma costurando a frase "MADE IN BRASIL" na sola de seu pé com linha e agulha, durante 10 minutos. Propondo uma denúncia sobre a relação com um corpo que não a pertence em meio a um país que vivia um violento período de ditadura militar.

Um ano depois apresenta a obra Medidas (1976), abordando a relação entre arte e ciência em uma instalação interativa, em que o público era convidado a fazer medições sobre seus próprios corpos e se confrontar com padrões e referências de valores externos.

Em seu trabalho procurou sempre pela experimentação e pela não fixação em apenas uma ideia ou um suporte para aquilo que tinha a dizer.


Para encerrar, gostaria de propor uma reflexão, pois no processo de pesquisa para essa matéria, me deparei com uma profunda ironia no tema sobre o qual escrevo. Ao mesmo tempo que me proponho a realçar a presença das mulheres dentro do campo da arte, acabei por me debruçar sobre um recorte de tempo específico: mulheres artistas e suas produções a partir da década de 20. Percebi que tal decisão foi muito menos decorrência de uma escolha e muito mais orientada pela capacidade de encontrar material de referência sobre essas figuras, o que me leva a pensar que, apesar dos nossos esforços ativos para reforçar a presença das mulheres na atualidade e no passado recente, continuamos incapazes de restaurar parte do estrago feito pela ausência dessas mesmas vozes na forma como contamos a nossa história a longo prazo, e algumas das sequelas deixadas por esse silêncio ainda serão longamente carregadas por nós enquanto sociedade.


***

A AUTORA: Clara Lindorfer é formada em Arquitetura pelo Politécnico de Milão e designer gráfica desde 2012. Trabalhou com criação de identidade visual, sites e artes gráficas para diversas empresas e profissionais autônomos. Em arquitetura já foi premiada nas competições internacionais "Kaira Looro" e "Rural School in Haiti".





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