Vivemos em uma era de informação abundante, onde a facilidade de acesso às notícias deveria, teoricamente, nos proporcionar uma visão mais ampla e compreensiva do mundo. No entanto, parece que a sobrecarga informativa, em vez de nos iluminar, muitas vezes nos cega. As pessoas veem o que elas querem ver, e essa tendência tem profundas implicações na maneira como percebemos a realidade e interagimos com ela.
A proliferação de notícias falsas, ou fake news, é um dos fenômenos mais perturbadores de nossa época. Esses relatos distorcidos, que se espalham rapidamente pelas redes sociais, muitas vezes são aceitos como verdadeiros, não por sua veracidade, mas porque reforçam as crenças preexistentes das pessoas. A psicologia social nos ensina que os seres humanos tendem a buscar informações que confirmem suas visões de mundo e a rejeitar aquelas que as contradizem. Esse viés de confirmação é um dos motores que alimentam a disseminação de informações falsas.
O termo "fake news" não abrange o real problema, pois a questão vai além de meras notícias falsas; trata-se de um sistema arquitetado pelas big techs que prolifera conteúdos enganosos e polarizadores para maximizar o engajamento. As plataformas de redes sociais, através de algoritmos sofisticados, priorizam a disseminação de informações que geram reações emocionais intensas, independentemente de sua veracidade. Isso cria bolhas informacionais e reforça o viés de confirmação, dificultando a distinção entre fato e ficção e promovendo um ambiente onde a desinformação floresce, beneficiando-se do modelo de negócios dessas empresas que lucram com a atenção e a divisão social.
As pessoas têm dificuldade de se descolar das ideias de mundo que possuem. Uma vez formada uma opinião, ela se torna um pilar da identidade do indivíduo, e qualquer ameaça a essa opinião é percebida como uma ameaça à própria identidade. Esse fenômeno é visível não apenas na disseminação de fake news, mas também na polarização política e social. As redes sociais criam bolhas de informação onde os indivíduos são constantemente alimentados com conteúdo que confirma suas crenças, tornando quase impossível o diálogo e a compreensão mútua.
Esse isolamento informacional leva a um ponto ainda mais preocupante: as pessoas não enxergam nada além da própria mentira que contam para si mesmas. Quando confrontadas com informações que desafiam suas crenças, muitas vezes optam por ignorar ou desacreditar essas informações, preferindo viver em uma realidade construída por suas próprias percepções. Isso é visível em debates públicos, onde evidências concretas e fatos são frequentemente descartados em favor de narrativas pessoais que se alinham com o que o indivíduo deseja acreditar.
Os perfis falsos criados com o auxílio de inteligências artificiais representam uma nova e preocupante dimensão na batalha contra a desinformação. As IA avançadas podem gerar identidades fictícias com um nível de detalhamento e realismo impressionantes, desde fotos de perfil plausíveis até históricos de postagens coerentes e interações complexas. Esses perfis não apenas espalham informações falsas de forma eficaz, mas também manipulam o discurso público e influenciam opiniões, tornando-se ferramentas poderosas para campanhas de desinformação coordenadas. A capacidade dessas IAs de simular comportamentos humanos autênticos engana até os usuários mais atentos, agravando a dificuldade de distinguir entre interações genuínas e fabricadas, e destacando a necessidade urgente de desenvolver tecnologias e regulamentações capazes de mitigar esses riscos.
A solução para esse dilema não é simples. Requer uma educação crítica que nos ensine a questionar nossas próprias crenças e a verificar a veracidade das informações que consumimos. Precisamos cultivar uma mentalidade de abertura e disposição para o diálogo, onde o objetivo não seja vencer uma discussão, mas entender a complexidade do mundo em que vivemos.
Como escritora, acredito que a literatura tem um papel fundamental nesse processo. Ao expor os leitores a diferentes perspectivas e ao convidá-los a questionar suas próprias suposições, a literatura pode ser um poderoso antídoto contra a cegueira informacional. Devemos, portanto, valorizar e promover histórias que nos desafiem, que nos tirem de nossas zonas de conforto e que nos obriguem a ver além do que queremos ver.
Slavoj Žižek, em sua provocativa afirmação "Eu já estou comendo da lixeira o tempo todo. O nome dessa lixeira é ideologia. A força material da ideologia - me faz não ver o que estou efetivamente comendo. Não é apenas a nossa realidade que nos escraviza," nos convida a refletir sobre a profunda influência da ideologia em nossa percepção da realidade. Žižek sugere que a ideologia funciona como um filtro invisível, moldando e distorcendo nossas percepções de maneira tão sutil que somos incapazes de reconhecer o verdadeiro impacto dela em nossas vidas.
Este "lixo ideológico" que consumimos constantemente representa as narrativas e crenças dominantes que cegamente aceitamos, impedindo-nos de ver além do que nos é apresentado como verdade. Assim, não é apenas a realidade objetiva que nos aprisiona, mas também a forma como somos ensinados a interpretá-la, mantendo-nos em um estado de conformidade inconsciente. Este insight é particularmente relevante na era das fake news e da manipulação digital, onde a proliferação de informações falsas se torna parte desse "lixo" que consumimos, reforçando narrativas ideológicas que perpetuam a desinformação e a alienação. Em última análise, reconhecer que "as pessoas veem o que elas querem" é o primeiro passo para superar essa limitação. Precisamos ser corajosos o suficiente para confrontar nossas próprias ilusões e humildes o bastante para aceitar que nossa visão de mundo é, em grande parte, uma construção. Somente assim poderemos começar a enxergar a verdade que está além de nossas narrativas pessoais.
Helen Araújo é jornalista e escritora. Formada pela Universidade de Campinas e pela Puc-SP, trabalhou por mais de dez anos como revisora e escritora-fantasma. Autora de análises literárias e contos, ela combina uma visão crítica aguçada com uma sensibilidade única.
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