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Coalas não pensam sobre anos vindouros. O ato de fé em e na arte.



Peço, por um instante, que tenha fé neste texto. Aliás, o “ato de fé” pode ser tudo o que nos sustenta. Mas primeiro precisamos desassociar “ato de fé” de cosmovisão religiosa e olhar como um objeto da linguagem. O primeiro passo é entender que “fé” e “ato” precisam estar juntos para o que me proponho aqui. A fé como palavra já supões uma ação. A palavra fé tem origem no grego pistia, que indica a noção de "acreditar", um verbo. No Latim fides, inclina-se a uma ação também: "fidelidade a...”.


Vou tomar como exemplo, um ângulo do conceito de fé fruto da constituição judaico-cristã que nos chegou. Pelo exemplo acima, já concluímos que a palavra fé acabou atribuída ao cristianismo em dado momento, apesar da palavra existir outrora. Acreditar, dar credito à, e a palavra fidelidade não necessariamente especifica a ação da palavra fé. Observa-se em jargões cotidianos como: “Sou católico não-praticante”. Por isso é necessário que algo “aponte” uma ação em uma fé. Usando o artifício cristão como base, se um católico diz tais coisas, não obedece a própria doutrina, já que a própria bíblia desacredita dessa fé sem ação. Em Hebreus, por exemplo, há uma frase “Are o campo e ore”. Ora, se fosse só “acreditar” o cristão não precisaria agir de forma alguma, nem em oração , nem no aro do campo. No antigo testamento, Moisés não seria deslocado do acampamento em que estava para agir em favor de seu povo, e a figura messiânica da bíblia não se declararia “ O Verbo”. Espero ter me feito entender do porque não uso fé, mas “ato de fé”.

Avancemos mais. Como seres de linguagem, criamos. Com a agricultura e posteriormente a indústria, nomeamos safras e enclausuramos chronos (antes divino) em um circulo amarrado a um circuito mecânico. Isso é uma ação sobre a natureza. Vamos além? Temos atos de fé em praticamente toda a nossa linguagem, inclusive ela, a língua, tenta acertar em seu propósito. Dizemos: “Amanhã nos vemos.”, “Vamos marcar uma reunião?”, “Será tal teoria válida?”.


Mas o “ato de fé” repousa acima de outra “coisa” que aparece na da vida do ser de linguagem. A Incerteza. Outros mamíferos não agem assim. Coalas não pensam sobre anos vindouros.

Podemos dizer então que o “ato de fé” é uma resposta à inevitável morte das coisas. Psicanalistas em encontros de discussão teórica fazem uma piada muito interessante. Quando casados, se encontram e um diz: Está casado? O outro replica: Ainda.”. Quase tudo que fazemos na existência passa por um ato de fé. Na clinica se escuta, por exemplo, “Quero ser maduro o suficiente”, para coisas como; filhos; projetos; mestrados; aposentadoria, etc. Vida, pela finitude das coisas, acontece num “ato de fé”. Mas, se um “ato de fé” é como um caldeirão, quais idealidades e certezas colocamos para fazer nossa sopa de sobre-vivência? Vou puxar um fio dela através da obra de Tolkien, que pode nos auxiliar aqui por sua aplicabilidade e apontar porque o artista tem um “ato de fé” no que faz.

Tolkien, filólogo e professor, foi um apaixonado por mitologia. Alias, através do estudo filológico, descobriu, dentre muitas coisas, que a formação das palavras que deram origem a alguns verbetes ingleses, já apareciam no antigo anglo-saxão, outra língua. Após, viu a transformação da lingua vicking em seu famoso ensaio, a tradução de Beowlf, poema mais antigo de língua inglesa, no qual evidenciou através dos costumes ali colocados o inicio da doutrina cristã e a queda dos rituais pagãos dos vikings. Ao que parece, é como se a humanidade fosse alternando os lugares em que depositam suas verdades e esperanças de sobre-a-vivencia. Mais adiante, em poemas medievais da era arturiana, trouxe à tona uma série de historias cavalerescas criadas pelos cátedras para disseminar a cosmovisão na era medieval e dar sentido à cavalaria. Ele mesmo, na pretensão de criar uma mitologia para a Inglaterra, não pode escapar de colocar uma cosmovisão monoteísta. Disse ele a respeito de suas obras: “No inicio o monoteísmo foi acidental, e depois colocado minuciosamente.”. A cosmovisão em uma religião é um dos “atos de fé” para figurar um propósito na vida. Mas existem outros lugares de atos de fé. E um dos grandes autores da ficção científica moderna aponta o caminho. Frank Herbert, com Duna, coloca em xeque a crença em um humano-messias, encarnado e suas consequências disso através de Lisan al Gaib. Essas são apenas duas receitas de sopa para nos aventurarmos. Elas são conflitantes, o próprio Tolkien recebeu o manuscrito de Duna e devolveu em seguida. Muitos estudiosos dizem que para ele, o homem-messias era uma perigosa criação da era industrial, que com seu iluminismo iria dilacerar o humano criativo deixando-se conduzir por uma novo ordenador, a industria da razão. A expressão máxima deste lugar está em seu personagem Sarumam, uma criatura que sabe a origem de seu mundo,sabe do deus monogâmico do lugar, mas abraça a possibilidade de apossar da criação. De ter a palavra.


Há algo aqui para acrescentar. Uma interessante característica do “ato de fé”. A possibilidade da ação fiel estar vazio de razão. Precisamos falar do fanatismo que pode ter em sua composição. Certa vez um colega que estava perto de perder todo o que possuía para seguir um caminho me disse: “Nem que eu entregue tudo o que tenho, serei um ator de qualquer forma. É meu destino!”. A força aplicada, que implica em uma cosmovisão e um ato de fé neste propósito, se erra o alvo, pode levar a um esvaziamento de sentido profundo em tudo. Com a derrocada, o sujeito pode não mais uma inventar sentido por conta do fanatismo. Nietzche já advertia: “O idealista é incorrigível.”

Uma coisa parece certa: Contra a inevitável morte das coisas, escolhemos caminhos que passam por atos de fé. Porém ignorar a incerteza não parece um bom caminho. Talvez tolera-la, por ser ela mesma o convite ao ato de fé. Ricardo Goldemberg, psicanalista, coloca: “A aposta da psicanálise, digo porque sou psicanalista, é a aposta de todo artista. Deixarmos de sermos “cheios de sentido” para assim, poder inventar um em qualquer direção.”. A questão está aberta e pressupõe temas como fanatismo, forma e ato de certo tipo de fé.”.


A vida pode ser uma obra de arte, uma marca da passagem de um ser humano na sua época e tempo. Uma obra cênica, de literatura, artes plásticas, musica, carrega algo que se desloca de um humano, num ato de fé de poder fazer sua mensagem alcançar outra alma e assim, de forma cíclica, reiniciar o ato de criação. O Frodo de Tolkien, após ver um de seus colegas de missão tentar tomar o Anel de Sauron dele, coloca: “Farei agora o que devo. Pelo menos está claro: a maldade do Anel já está operando na comitiva, e o Anel deve abandoná-los antes que cause mais dano. Irei sozinho.”. Não é interessante que no ato final, em que se consagraria como divindade, ele falha?”. O público não reage bem ao personagem por esta fraqueza que indiretamente está ligada a todos nós, a incapacidade de lidar com a impotência. Eu perguntaria: Quem é então o herói da obra, já que o Lisan Al Gaib encarnado fracassou. Tolkien tem sua resposta a essa questão e deixo ela aqui aberta para reflexão. Perceba, Frodo nem se põe na frase, como se fosse um fanático de si. Neste instante, ele crê ser o que Paul de Herbert põe em questão em sua obra.

A vida, assim como a arte, nos desafia a reinventar significados e a buscar caminhos que transcendam as limitações do conhecido. Que possamos, portanto, nutrir nossos atos de fé com tolerância à incerteza, encontrando em cada desafio uma oportunidade para reinventar nossa própria existência. Que nossos atos de fé sejam não apenas reflexos de nossas convicções, mas também expressões de nossa capacidade de criar e transformar o mundo ao nosso redor.


Se há fé na vida, qual ato dessa virtude praticamos? Mais ainda, o que há na sua sopa eu posso provar, ou somente os que você escolhe podem sentar em tua mesa?


Votos de um bom mês.

Um humilde Ato de fé.

 

Artur Uchoa é psicólogo desde 2009. Apaixonado por literatura, cinema, psicanálise e filosofia.



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