
Isolar a obra de arte, apartá-la da sociedade, “do lugar em que se vive”, é um ato conservador. Essa é uma lição que podemos tirar ao pensar na história moderna da crítica de arte, mais especificamente dos estudos literários.
No livro “Dez Lições Sobre Estudos Culturais”, a professora Maria Elisa Cevasco nos conta como, no período vitoriano, a religião perdeu sua dominância perante as descobertas científicas e as mudanças sociais. Perdia, portanto, o papel de promovedora de coesão social. A partir da metade do século XIX, então, começa o interesse pelos estudos da literatura inglesa, principalmente da poesia. Porque, para os novos entusiastas da disciplina, a grande arte, os assuntos elevados da poesia, a disseminação dos maiores valores humanos, uniriam as pessoas.
Desta forma, a literatura se tornaria o cimento social que acabaria com a luta de classes. Como escreveu Terry Eagleton em “Teoria da Literatura: uma introdução”, de forma irônica e provocativa, mas esclarecendo o pensamento da época:
“Como a literatura, tal como a conhecemos, trata de valores humanos universais e não de trivialidades históricas como as guerras civis, a opressão das mulheres ou a exploração das classes camponesas inglesas, poderia servir para colocar em uma perspectiva cósmica as pequenas exigências dos trabalhadores por condições melhores de vida, ou por um maior controle de suas próprias vidas; com um pouco de sorte, poderia até mesmo levá-los a esquecer tais questões, numa contemplação elevada das verdades e das belezas eternas”.
Como conseguir a unificação da sociedade através da literatura? Garantindo que exista um método comum de leitura da arte. O que ficou conhecido como “close reading” preconizava apenas a “leitura do que está na página”. Ou seja, negava questões como contextos sócio-históricos e biografia do autor para focar apenas na decodificação dos elementos formais da obra. Era, como fica claro, uma visão que separava a arte da sociedade que a criou.
É verdade que as intenções dos estudos literários da época podiam até ser vistas, à princípio, como revolucionárias. Como uma espécie de “padronização democrática” que permitiria o acesso de todos à arte. Mas, no fundo, diziam que os estudiosos da disciplina eram os que definiam qual o jeito certo de compreender a arte e o que pode ser considerado a boa arte de verdade. Em outras palavras, os homens de bom-gosto, os escolhidos, que deveriam ser seguidos pelos outros.
Havia, então, duas posições sobre o assunto. A elitista hard, que achava que só a alta cultura era capaz de produzir arte de verdade, e a elitista light, que achava que só um grupo específico deveria ditar o que é arte de verdade e como lê-la, ainda que todos devessem seguir essas definições e acessar essa arte. Uma coisa importante que este segundo grupo ignorava é que, por exemplo, a maioria das pessoas não têm tempo livre ou acesso aos meios de produção da arte, o que cairia de novo em uma elite como a única que cria e transmite seus valores através dela.
Pulamos, então, para os anos 1960, com uma nova proposição. Surgem os estudos culturais, capitaneados por Raymond Williams, inspirados pela Escola de Frankfurt, György Lukács, Antonio Gramsci, entre outros. Eles complementam a ideia marxiana de base e superestrutura - que de algum modo também separava o mundo dos meios de produção do mundo da cultura - dizendo que as duas coisas são inseparáveis.
Ou seja, é preciso socializar os meios de produção cultural e usar da crítica para entender o mundo e ajudar a modificá-lo. É preciso, justamente, injetar na análise os elementos sócio-históricos, suas formas de produção, suas instituições. Porque, uma vez que as duas coisas andam juntas, deixa de haver a conciliação de classes e os que são dominados se unem para gerar uma mudança.
Essa discussão, como não poderia deixar de ser, chegou ao cinema, a grande arte do séc. XX. Falando nas teorias cinematográficas, pensadores-realizadores como Sergei Eisenstein e Dziga Vertov já debatiam sobre como fazer a criação cinematográfica ter papel revolucionário. Quando o pensamento cinematográfico chega nas universidades e passa a uma análise cinematográfica, principalmente unindo o estruturalismo e a semiótica, o foco eram os signos do cinema. Os estudos culturais ajudam a situar esta arte em seu contexto.

Entende-se, por exemplo, o papel da ideologia nesse jogo todo. Karl Marx já nos contava que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Que ela é vendida para as classes dominadas como se fossem do interesse delas. Então, é claro que tudo que envolve um filme está tomado de ideologia: seus meios de produção; as instituições que permitiram a sua existência; o pensamento da sociedade em que ele foi criado; os aparatos que identificam seu valor, como os críticos, prêmios e festivais; a recepção e o gosto do público, que também é criado artificialmente através dos interesses da classe dominante.
É preciso deixar claro que isso não quer dizer que os elementos formais de um filme devem ser ignorados. Muito pelo contrário, sabemos que a moral de um filme está na mise-en-scène e que não há separação entre forma e conteúdo. Sinceramente, análises que não tragam uma visão sobre a forma da arte talvez nem possam ser chamadas de análises. A questão é que, isolando a obra do mundo, também não há crítica.
Queremos discutir arte para nos sentirmos inteligentes e especiais? Queremos entrar numa roda de masturbação intelectual que não leva nada a lugar nenhum? Ou a crítica serve para gerar um novo pensamento e quem sabe uma mudança?
Se é o caso da terceira opção, não se pode ficar num movimento conservador em que, em primeiro lugar, só se pensa no que está diretamente na tela (passando o “close reading” para a discussão cinematográfica) e, em segundo lugar, que acredita que há grupos que devem ditar como ler uma obra e o que é a verdadeira arte. Talvez, pior ainda, imaginar que nós somos esse grupo.
Trazendo materialidade para tudo o que está sendo dito aqui, é preciso entender que cultura é uma produção comum, em que todos devem participar tanto da criação quanto da discussão e que tudo isso só acontece dentro de uma existência social específica que deve ser favorável a essa socialização. É preciso incluir essas questões na crítica, para tirá-la de um lugar intocável que não repercute o mundo em nada. É preciso sair deste lugar de pessoas especiais escolhidas para nos dizer o que é a boa arte, como a Academia do Oscar ou mesmo críticos que acham que têm a verdade que deve ser passada de cima para baixo aos meros mortais.
Por exemplo, não chegaremos em lugar nenhum se a discussão sobre um Oscar não passar pelos motivos sociais, econômicos e históricos que levam a ganhar o prêmio. Sobre quais seriam as vantagens ou desvantagens materiais de ganhar. No caso das reações do público, qual ideologia dominante faz com que haja um xingamento a um, ou qual luta toca uma pessoa quando se critica outro.
Se gostamos de arte e queremos discuti-la por um bem comum, devemos entender que o jeito de conseguir mudanças e melhoras tanto no mundo quanto na cultura passa por uma construção conjunta em que todos tenham acesso à arte e aos meios de produzi-la e discuti-la. Se um petista xinga um bolsonarista pobre de burro, esse petista jamais vai conseguir trazer o bolsonarista para a causa; jamais vai conquistar votos que levarão a uma melhora de vida tanto para o petista quanto para o bolsonarista.
Ficando nesse movimento conservador, a gente pode parar de discutir a arte e deixar que a classe dominante nos diga o que ver, o que achar e do que gostar. Se não acreditamos em nenhuma mudança, podemos ficar quietinhos porque o mundo já tem opinião demais e falar por falar é só mais barulho. Se queremos nos sentir especiais, os escolhidos do alto de nossos pedestais sem entender os outros e sem tentar criar uma discussão ampla, honesta e que una as pessoas por uma mudança estrutural contra o status quo, será mais produtivo ficar no quarto batendo punheta enquanto gritamos o quanto somos inteligentes.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
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