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Foto do escritorEric Campi

Crítica: Ainda Estou Aqui

Quando as pessoas, alienadas de si mesmas e transformadas em engrenagens de um sistema, deixam de ter tempo para o ócio criativo, lazer e contemplação, o parâmetro de respeitabilidade de um objeto artístico passa a ser a sua utilidade. Como se um filme, por exemplo, precisasse ser algo a mais para que o consideremos bom. Algo a mais que, é importante salientar, restringe-se sempre a sua temática, nunca a sua forma. A arte que trata de um assunto importante seria boa automaticamente, independentemente de como trata esse assunto. Porque se torna preciso que ela sirva para alguma coisa.


É o oposto do tal do “prazer desinteressado” do Kant. O que pode indicar que, no capitalismo, é difícil não ter a necessidade de possuir ou consumir o objeto de prazer. De toda forma, Aristóteles diria que a Filosofia é a maior das ciências justamente por não estar subordinada a nada nem a ninguém. E poderíamos dizer o mesmo sobre a arte ou sobre o cinema mais especificamente. Mas, não precisar servir para nada não é o mesmo de não poder servir para nada. Às vezes, a expressão “filme importante”, que costuma não dizer verdade alguma sobre cinema, pode ser usada adequadamente, ainda que seja só o pontapé inicial para o debate. É o caso de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles.

Como deixar de lado as interferências externas, as ideologias, as lutas da vida real ao discutir um filme como este? Ainda mais quando, pouco depois de sua estreia, são reveladas as tentativas de golpe e assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes planejadas pelos fascistas do exército brasileiro para favorecer Jair Bolsonaro. Difícil de acreditar que um juízo desinteressado, uma análise imparcial (que por si só é impossível) seja a melhor opção. Selar hermeticamente uma obra, deixa-la pairar no ar sem que encoste os pés no chão é justamente o que cria o curto-circuito entre saber e conhecimento, entre informação e cultura. É o que faz cristãos amarem seu livro sagrado ao mesmo tempo em que desejam matar oponentes.

“Ainda Estou Aqui” pode receber aclamação mesmo estando bem longe de ser uma obra-prima. Walter Salles sabe das limitações que a história real do desaparecimento do deputado Rubens Paiva traz. O ponto-de-vista dessa narrativa sobre apenas um dos muitos crimes cometidos pela ditadura empresarial-militar brasileira tem classe e tem cor. Se sequestro, tortura e assassinato aconteciam com políticos brancos de classe média-alta, como Rubens Paiva, há muito o que dizer sobre os condenados da terra que vivem em estado de exceção mesmo quando estamos na chamada democracia. Mas, a beleza do filme está exatamente na tentativa cambaleante de tentar tornar esse recorte algo universal.


Fica assumido, desde o início, que aquela família, com aquelas especificidades, vivendo aquela vida, é apenas um ideal. Inalcançável para outras pessoas e até para a família real de Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspirou o filme. É apenas uma memória, falsa e perfeita, mas que precisa ser inabalável para justamente ser então abalada pela falta. Salles cria uma mise-en-scène social, uma sucessão de eventos comuns para aquela família: a saída entre amigos, as festas ao som de vinil, o pebolim de madrugada com o filho insone. Todas as situações tendo o Rubens Paiva de Selton Mello como centro gravitacional.


A câmera que passeia pelos ambientes cheios da casa, os rostos dos atores fotografados gentilmente enquanto cada gesto e movimentação são precisos para estabelecer as relações entre os personagens, a trilha-sonora setentista... São todos elementos que estão ali para criar uma presença que se desfará mas continuará a ser sentida. Já que o filme não é sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, mas sobre os esforços de Eunice Paiva para suprir essa falta.


A mãe que também assume o papel de pai é uma figura mais do que universal na realidade brasileira, muitas vezes porque o braço armado do estado tira a presença paterna de sua família, como é o caso no filme. Fernanda Torres assume então essa personagem que é a mãe de todos, como Fernanda Montenegro havia sido em “O Auto da Compadecida” como Nossa Senhora. São mulheres firmes, porque precisam, porque levam nas costas o peso da interferência externa, da vida política e social que sangra até o seio do lar. Mas sempre ternas.


Tirar a narrativa do âmbito político/social e trazê-lo para o privado é uma escolha, talvez bastante liberal e condizente com o classe de Walter Salles e sua família. Também é uma escolha questionável que essa “ternura” se aproprie do filme ao, por exemplo, tratar dos funcionários da ditadura como gentis e meros seguidores de ordem, como é a tão repetida ideia da banalidade do mal. Ou em como o filme talvez passe por cima das violências físicas perpetradas pelo regime de extrema-direita. No entanto (com o perigo de mais uma vez permitir que fatores da vida penetrem o filme mais do que deveriam), a atualidade é uma em que a imagem já não significa, comunica, ou faz sentir mais nada. Apostar de fato no familiar, sentimental, pode ser um antídoto. Ainda que problemático, como a cena final com Fernanda Montenegro indica: um exagero que a sutileza do resto do filme não sustenta.


“Ainda Estou Aqui” é um filme de infinitas interpelações e penetrações, dentro e fora dele mesmo. Seja o público que invade e destrói o privado na narrativa, seja os elementos metalinguísticos (o texto de Marcelo Rubens Paiva, a relação de mãe e filha de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro), seja em como o filme é perpassado por tudo o que acorreu e continua ocorrendo na história do nosso país e no nosso dia a dia. É quase impossível falar sobre ele como objeto isolado, já que é uma obra que se propõe, que se permite, que atrai, que se beneficia e que sofre de tantas intromissões. Imperfeito e belo, “Ainda Estou Aqui” é uma obra que, por tudo isso, pode e talvez deva ser adorado para além de seus próprios méritos. Enquanto a opressão e a repressão criarem buracos nas vidas privadas, esse tipo de objeto artístico precisa existir. A falta se supre com memória e com ação.


Podemos debater o juízo desinteressado e o não-utilitarismo da arte quando a frase que encerra o filme sobre a falta de punição dos responsáveis pelo assassinato de Rubens Paiva deixar de ser verdade. Até lá, façamos e debatamos filmes. Gritemos “Sem Anistia, ontem e hoje”.


 

Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.

1 Comment


Beatriz
Beatriz
há 5 dias

Incrível essa análise !!


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