
Em “Babygirl”, a diretora Halina Reijn continua o movimento que já se apresentava no sucesso anterior “Morte, Morte, Morte”: o de atualizar para o século XXI subgêneros cujos auges foram nas décadas passadas. No filme predecessor, ela se filiou às histórias de mistério e assassinato, juntando um cenário típico de um giallo como “Cinco Bonecas pela Lua de Agosto”, de Mario Bava, e sua crítica corrosiva à burguesia, com tropos popularizados nos EUA pelo slasher. Agora, estamos no território do thriller erótico, típico dos anos 1990, aos moldes de Paul Verhoeven.
A diferença é que, diferente do longa anterior, em “Babygirl” há realmente um filme acontecendo para além das ideias. “Morte, Morte, Morte” era muito mais preocupado com a sátira, com as tiradas espertinhas e a subversão de uma trama whoddunit (“quem matou?”). Não havia encenação que sustentasse o exercício, ou qualquer escolha estética significativa. Já no novo longa, a análise crítica da contemporaneidade está integrada à toda construção cinematográfica.
Nicole Kidman interpreta Romy, CEO de uma empresa de e-commerce automatizado que se entrega ao relacionamento extraconjugal com o estagiário Samuel, regado de fetiches de poder. Como o neoliberalismo individualiza ao extremo as pessoas, impedindo a vida pessoal e a abertura ao outro, a personagem não consegue realizar suas fantasias e gozar com o marido, recorrendo à pornografia. É isso que nos diz o ótimo corte que leva do orgasmo da mulher aos robôs funcionários da empresa. O capitalismo desumaniza.
O encontro com o outro, com o estagiário interpretado por Harris Dickinson, torna-se uma abertura de si para o mundo. As relações de poder se invertem. A CEO torna-se submissa e o estagiário assume a posição dominante. Cada um exerce o papel sexual invertido do papel social. O que é curioso nessa situação é que Reijn tem o tato de perceber as novas configurações de mundo. Em “Showgirls”, de Verhoeven, por exemplo, era a mulher quem estava abaixo na pirâmide social, tendo que usar a sexualidade para alterar seu status. Agora, a luta de classes inserida na guerra entre os sexos tem o lugar de gênero contrário.
Em tempos de pós-Me Too, a diretora também coloca em pauta o tema do consentimento com as novas configurações de poder. A submissão é uma fantasia combinada entre o casal, mas Romy não consegue negar a realização dos fetiches já que isso pode custar o novo relacionamento e sua vida profissional. Ao mesmo tempo, na vida comum, é ela quem tem o poder de destruir a carreira de Samuel. Ainda que não apresente respostas definidas sobre tudo isso, Reijn pincela as questões inserindo-as na narrativa sem chamar atenção ou esquecer que está construindo um filme que precisa funcionar como tal.
É uma obra tateante, portanto. No bom sentido. Porque tenta encontrar caminhos para inserir o thriller erótico no novo mundo, sem ter muitas certezas de como fazer isso, mas que se interessa e que goza com o jogo. Também é nessa ideia de tatear que a diretora firma sua abordagem. Assim com Romy, a câmera tem medo e se sente atraída por aquela situação. Abrir-se ao outro não é fácil, afinal. No primeiro plano do longa, por exemplo, temos uma visão de cima, em plongèe, como de alguém que olha para o sexo de longe, quase com julgamentos morais, escondendo a nudez da atriz.
As cenas entre Kidman e Dickinson são filmadas com o encurtamento da distância, de forma ansiosa e excitada. Dá para dizer que este é um thriller não porque haja o elemento do suspense na narrativa (pelo menos não na prática), mas porque ele se constrói inteiro na tensão do deixar-se levar, do entregar-se. A jornada de Romy é o suspense em si só, sobre como é necessário para ela estar nessa situação e depois sair dela e se resolver. É o reconhecimento de um desejo recalcado, a vivência da “perversão” e a evolução a um estado em que o fetiche está integrado de forma saudável à vida.
Nesse sentido, é verdade que o filme perde em dramaticidade por boa parte da duração. A subtrama da filha com a namorada, por exemplo, passa batida. Mas, contar com um elenco tão talentoso e ter um olhar de curiosidade sincera com tudo é o que garante outros bons momentos. É bonita a forma com que a diretora resolve a relação entre o estagiário e o marido, com Antonio Banderas fazendo o corno não-tão-manso de bom coração. E, mais uma vez, pinceladas de apontamentos sobre a contemporaneidade ajudam a construir um filme com existência própria, como é o caso da personagem Hazel, quando esta coloca em xeque a ideia de que moralidade e empoderamento andam juntos necessariamente.
“Babygirl” está, ainda, num lugar raro no cinema atual quando se fala da representação do sexo. Ele não se coloca nem como uma disrupção cheia de nudez, nem como um filme frígido feito para não assustar jovens-Damares conservadores. Reconhecer a objetificação do corpo e a necessidade de rever essa prática é bem diferente de impedir o sexo e a sexualização. Nada mais capitalista e neoliberal do que corpos que não transam, que não sentem, que têm medo de nudez e que acham que o sexo tem que ter motivo.
Reijn encontra um equilíbrio, não se negando a mostrar as dinâmicas sexuais e a nudez, mas sem que isso seja fetichizado e desumanizado. Até porque, o ponto de vista está sempre muito próximo de Nicole Kidman; é a visão dela que dita o olhar do público. Assim, tudo soa natural e comum. A diretora realmente propõe algo para colocar no lugar dos moldes antigos. Desconstruir é isso, afinal. Desfazer algo para colocar outro no lugar. Se apenas negarmos o que é ruim, estamos fadados a ficar com ele, já que não damos outra opção.
“Babygirl” é, então, esse objeto tateante que propõe a apropriação de um subgênero do cinema para o momento atual, com toda a consciência do que mudou de lá para cá no mundo e tentando mudar o que é necessário no fazer cinematográfico. Essa tentativa traz tropeços e até uma certa falta de foco, mas não dá para negar que suas propostas sejam genuínas e que, nisso, chegue mais longe do que nos acostumamos a ver ultimamente.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
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