
Hamdan Ballal, um dos codiretores palestinos de “No Other Land” (“Sem Chão”), foi sequestrado e torturado por colonos israelenses na Cisjordânia e preso por soldados de Israel. Depois de ser libertado e tratado em um hospital, o cineasta afirmou que o sequestro se deu por ele “ser palestino e ter ganhado o Oscar” de Melhor Documentário este ano.
“No Other Land”, que ele dirigiu junto a Rachel Szor, Basel Adra e Yuval Abraham, não é um documentário primoroso, bem-acabado, ou que traz um olhar novo sobre a questão palestina. Mas ele nos mostra o que sabemos que acontece. Uma coisa é ter ciência, racionalmente, que o que há de mais desumano possível é tirar pessoas de seus lares, destruir suas casas, deixá-las sem moradia. Outra coisa é ver, nem que seja rapidamente, um pouco desse sofrimento.
O cinema tem diversos meios de gerar empatia. A identificação do público com o que vê numa tela se dá tanto com os personagens quanto com a câmera. Por exemplo, enquanto o cinema clássico filmava a partir de um ponto-de-vista “de fora”, de um local privilegiado de onde melhor se assiste aos acontecimentos, o cinema moderno permitiu uma maior proximidade. Como se, ao assumir mais a presença da câmera, o filme ganhasse ao colocar o espectador dentro do mundo que ele vê e não mais como se ele olhasse por uma janela.

Essa ideia vem muito inspirada pelo documentário e a partir da necessidade de adaptar a produção cinematográfica à escassez de recursos de um cinema “independente”. Glauber Rocha falaria numa estética da fome, enquanto Pier Paolo Pasolini enxergava nessa proximidade uma relação com a literatura e cunhou a “subjetividade direta livre”. É como se, em “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos, a luz natural, a superexposição da fotografia, a câmera na mão e outros traços de estilo, escolhidos também pela falta de recursos, trouxessem o narrador para experenciar o sofrimento dos narrados.
“No Other Land” mantém sempre a câmera próxima aos dois protagonistas, Basel Adra e Yuval Abraham, e de outros palestinos de uma vila na Cisjordânia que, semanalmente, assistem ao exército israelense expulsá-los e destruir suas casas. Quando não estamos vendo, de perto, uma mãe que chora por seu filho baleado por tentar proteger suas ferramentas de trabalho, estamos dentro da ação, uma vez que os protagonistas estão sempre filmando e, então, assumimos essa subjetividade.
É claro que, concebido em meio à pobreza e ao genocídio continuado que acontece com os palestinos (e é bom ressaltar que a história não se passa em Gaza, mas na Cisjordânia; ou seja, o expansionismo e a limpeza étnica israelense não veem limites), o filme tem escassez de recursos. É feito no calor do momento, tentando tirar do caos do dia a dia imagens e narrativas que demonstrem o sofrimento do povo palestino. Os planos saem de foco, os reenquadramentos são constantes. Não há grandes imagens poéticas ou cheias de significados e subtextos. Tudo é cru e meio improvisado.

Existe, sim, um ímpeto por tentar mostrar as coisas e não muito mais que isso. Há poucas linhas narrativas e as que existem nem sempre levam a algum lugar. Por exemplo, a relação entre Basel e Yuval é interessantíssima: um palestino e um israelense unidos para denunciar os horrores do genocídio. É uma relação cheia de ambiguidades, de possíveis ressentimentos causados pelas nacionalidades mesmo dentro de uma amizade que vai se tornando extremamente forte e verdadeira. Mas o filme não se aprofunda nisso. Como não se aprofunda nos sentimentos dos moradores do vilarejo quanto a Yuval, já que em determinado momento um deles diz que não consegue mais aguentar o jornalista judeu por lá.
O que o filme consegue é se colocar totalmente dentro do conflito. Como se, vivendo aquilo diariamente, não fosse muito capaz de articular todas essas questões “marginais”. Elas só acontecem, evoluem ou deixam de acontecer. E acabou. Só nos resta seguir numa rotina constante. De dia, protestar e ver o absurdo acontecer. De noite, tentar manter um pouco de sanidade, de humanidade, em conversas e pequenas reuniões familiares e sociais.
Interessante que o nosso vencedor do Oscar, “Ainda Estou Aqui”, foque na subjetivação, no tornar privado uma dor pública política. Já “No Other Land” estabelece que as duas esferas coexistem, ainda que haja, aqui, uma divisão temporal. Quase que uma jornada de trabalho: amanhecemos lutando e a noite tentamos viver nos escombros. De toda forma, nos dois há esse apelo ao afeto.

Ou seja, são filmes que tentam burlar a dessensibilização contemporânea neoliberal através da proximidade, da familiaridade. De personalizar o sofrimento e, no limite, mostrar que os nomes e rostos que vemos sendo torturados lá ou cá são pessoas. Têm história, riem, choram, sentem e sonham. Não são apenas coisas do outro lado de uma tela.
Nessa precariedade, nessa estética da fome ou do genocídio, “No Other Land” assume uma função simples de se contentar com uma certa “mostração” das coisas como elas são. De organizar os registros, que incluem filmagens antigas e narrações em off, de forma meio confusa e atabalhoada, mas que, pelo menos, mostram o que precisa ser mostrado. Não importa muito ter coesão narrativa; importa mais, por exemplo, ver o sofrimento de crianças que têm a escola destruída pelos israelenses.
“No Other Land” ganhou o Oscar que, como todo prêmio, é político. A visibilidade que isso traz claramente irritou os assassinos que expulsam, perseguem, prendem, torturam e matam os palestinos diariamente. O motivo parece bem claro. Este é um filme que nos aproxima das vítimas, que nos mostra que elas são seres humanos como nós. E isso – enxergar os palestinos como iguais, não como seres inferiores – é algo que Benjamin Netanyahu e outros sionistas jamais conseguirão aceitar.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
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