“Implacável” e o filme B de ação: a moral está na encenação
- Eric Campi
- 17 de abr.
- 4 min de leitura

Um nicho pouquíssimo explorado pela crítica cinematográfica é o do filme DTV, ou “direto para o vídeo”. Este é um formato que se popularizou antes da prevalência dos streamings e designa as obras feitas para serem lançadas diretamente para consumo caseiro, seja em mídia física ou aluguel e compra online, normalmente consideradas como "filme B".
São filmes de baixo orçamento, sem atores conhecidos, que não atingem um “padrão de qualidade” esperado para estar nos cinemas. A questão é que esse padrão, como todos eles, é construído. Neste caso, principalmente pela indústria americana, que enxerga superioridade técnica como sinônimo de qualidade. Daí vêm as ideias bastante questionáveis de “roteiro sem furos”, “fotografia bonita”, “atuações convincentes”. Conceitos que dizem muito pouco sobre o valor artístico de um filme.
É uma lógica que privilegia, vejam só vocês, quem tem mais dinheiro. Basta ter acesso aos melhores equipamentos, pagar os melhores profissionais, que não importa a bosta que saia, será tecnicamente impecável. Agora, se você não tem dinheiro para isso, amigão, esquece. É “filme B” (usado pejorativamente), é tosco, é ruim. Não precisa pensar muito para entender que, seguindo esse padrão, obras de vanguarda, do cinema soviético, do neorrealismo italiano, do cinema novo, do cinema marginal e da nouvelle vague são cinema da pior qualidade.
Em todo caso, o DTV reservas pérolas que precisam ser conhecidas. Ainda que sejam feitos, neste formato de produção e exibição, filmes de todos os gêneros, talvez o grande destaque sejam os longas de ação. É um nicho que tem seus grandes astros e grandes diretores. Scott Adkins, por exemplo, o galã da porradaria B, tem aparecido cada vez mais em caríssimas produções como o último “John Wick”, “Doutro Estranho”, entre outros.
Um ótimo exemplar recente é “Implacável” (2019), dirigido por um dos grandes diretores do nicho, Jesse V. Johnson e disponível no Prime Video. Nele, Adkins interpreta Cain Burgess, fugitivo da prisão que se coloca numa jornada de vingança contra as pessoas que o tornaram violento.
É o típico filme de ação inglês, aos modos de Guy Ritchie. O protagonista, prendendo seus algozes num pub, narra a história pregressa através de flashbacks. O tempo da narrativa é não-linear, a caracterização é a da classe trabalhadora britânica, a ação é violenta e o humor é de macho brucutu.
As diferenças entre “Implacável” e seus típicos pares, porém, são várias. A começar por Adkins. Aqui, ele não só demonstra a habilidade costumeira com as artes marciais como também está naquele que deve ser seu melhor papel. Cain tem uma mudança drástica de comportamento ao longo do filme, começando como um lutador e cidadão éticos e se tornando um ser bestial, coberto de cicatrizes internas e externas.

Adkins abraça o personagem, do bom-mocismo heroico inicial à malícia do estágio final da transformação. Mesmo com toda a brutalidade, com a armadura que se torna o corpo machucado de Cain, há algo de intacto na moralidade dele, cuja luz, vez ou outra, Adkins deixa transparecer. Este é um anti-herói trágico, com toda a grandeza que deve ter, longe de qualquer naturalidade da interpretação. Ele é grande, caricato, violento e barulhento.
Cabe a Jesse V. Johnson permitir que todas essas características fluam. O diretor consegue mitificar a figura de Adkins, permite-se mergulhar na tragédia, em todo o lado exagerado e dramático. Há quase um prazer em filmar as intermináveis sessões de violência pelas quais passa Cain, mas não de um jeito pornô-de-sofrimento à la Alejandro González Iñárritu. Pelo contrário, é um misto de tristeza com tudo o que acontece e a alegria de ver ser moldado um novo mártir, como o ferro colocado no fogo e martelado para se tornar espada.
Por isso, cada golpe precisa contar e ser sentido. Precisa ser visto. Como todo grande diretor de ação, Johnson tem a clareza dos movimentos e controle de como se utilizará de cada espaço. Afinal de contas, cenas de ação também precisam de encenação. As lutas são de fato narradas, têm moral, contam histórias, demonstram características. Estão muito próximas da expressividade da dança. E, no cinema, retornam ao tempo do mudo, como o musical retorna ao clássico falado.
Já que a moral de um filme está na mise-en-scène, é isso que este tipo de cinema tem que o típico blockbuster de ação e aventura está perdendo cada vez mais. Com sequências mal encenadas, ação picotada, sem ritmo e sem expressividade, as obras nada dizem. “Implacável”, ao contrário, lembra o espectador o que faziam os grandes filmes de ação de outrora: contavam histórias de verdade, construíam mundos com suas próprias regras e valores, funcionamentos e comportamentos. Em outras palavras, erigiam ou derrubavam morais.
Cain, como o nome bíblico não deixa passar batido, é uma espécie de Jesus Cristo do proletariado contemporâneo. Ele é brutal, sujo, meio escroto, porque é humano. E é essa humanidade que se contrapõe aos ditames do capital que rouba, pune, encarcera e mata pelo bem do lucro. Se o capital é bestial e a luta de classes é inescapável, melhor usar da violência para permitir que outros tenham o mínimo de dignidade. Para que outros possam encontrar um caminho de fugir da própria violência.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
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